sexta-feira, 22 de abril de 2011

PIANOS, SALGADOS & CLAUSURA

Vindo ao mundo por intermédio de uma família de cacauicultores radicada em Canavieiras, ainda menino deixei estas "terras do sem fim" para, literalmente, singrar por outros mares.  Pra dizer a verdade, a propalada "Terra da Esperança" nunca exerceu fascínio sobre mim. Tinha outros sonhos... Sonhos que não podiam ser realizados por aqui! Eu sabia... Foram então, por essa busca, trinta e um preciosos anos na Cidade Maravilhosa.  No começo, o dinheiro do cacau foi fundamental, mas depois perdeu a serventia. 

Há pouco mais de dez anos, reencontrei-me com minha Terra, minha gente... Desde o primeiro dia do retorno, pus-me, como uma espécie de pseudo-psicólogo, a observar e tentar relacionar o comportamento dos sujeitos locais com o estágio de desenvolvimento sócio, econômico e cultural dessa nossa região.

Nesse retorno... Cerca de oito anos em Canavieiras e um pouco mais do que dois aqui (em Ilhéus).  Não obstante a diferença populacional entre as duas cidades, um grupo de pessoas que as habita mantêm as mesmas características.  Convencionei chamá-las de "enclausuradas". Enclausuradas no tempo e nas tradições locais. 
Gente que ainda vive como se ainda estivesse no usufruto das benesses do cacau e das mesmas condições de vida e relações humanas com aqueles que eram desprovidos de terras para o cultivo do "fruto dos deuses"

Gente que não sabe o que terá na mesa para a próxima refeição; que come "jabá" (quando tem) e arrota caviar!  

Gente que aprecia declinar nome e sobrenome antes de estabelecer diálogos...  

Gente que não conseguiu romper o cordão umbilical com o modelo patriarcal; que não buscou nem atingiu a emancipação; que não galgou o estágio de independência necessário à própria evolução!

Gente que preferiu o atavismo à libertação das próprias mentes!

Gente que preferiu reduzir a pujança da vida a uma farsa, uma mentira! 

Gente, de corpo presente, no alvorecer da segunda década do terceiro milênio, com as mentes agrilhoadas na metade do século que passou!

É aí que, nessa mania de elaborar pseudos diagnósticos de perfis psicológicos, começo a buscar uma relação entre o atual estágio de desenvolvimento social, econômico e cultural de nossa sociedade com esses comportamentos de "clausura" mental.

A inspiração para escrever essas bobagens veio de um recente diálogo com uma pessoa que fazia parte da chamada "elite" dos que (como os meus) tinham muitas terras e cacau e, hoje, nada mais possuem.  Diferentemente da maioria dos que conheço nessa situação  -  incluindo familiares meus  -,  essa senhora é de uma humildade, um altruísmo e um desapego aos bens materiais extraordinários.  A pessoa de quem falo, hoje sobrevive de fazer doces e salgados por encomenda.  Não a conhecia até o momento de necessitar dos seus serviços.  Acompanhado da minha mulher, entro na sua residência  -  um casarão antigo situado no centro de um enorme terreno murado e numa das mais valorizadas áreas de Ilhéus. Ouço, bem baixinho, o som de um piano.  Curiosa, minha acompanhante pergunta: "Quem está tocando piano?"   Diante da pergunta, a dona da casa começa a desfiar um pouco de sua vida.  "Você nem imagina... Toquei piano durante muitos anos...  - Mas, que mudança, hein!  É interrompida pela minha acompanhante.   -  "É, minha filha... Era nos bons tempos do cacau... Tínhamos muitas fazendas.  Cheguei a ter mais de dez pianos!  Não tinha muita noção do valor das coisas... Dinheiro era o que não faltava! À medida que um piano apresentava defeito comprávamos outro!  Depois, veio a quebradeira, e desde então passei a fazer salgadinhos... Além da renda dos salgados, eu alugo parte da propriedade  (a casa é um sobrado)E a gente vai vivendo, né!?" O som do piano vinha, na verdade, de um "micro-system" que reproduzia um CD no cômodo ao lado.

Vi nessa mulher o exemplo de alguém que soube adaptar-se à nova realidade.  Muito diferente de gente que conheço e vive atrelada ao passado e achando que ainda está vivendo nele.  Como disse antes: "enclausurada".  Apesar disso, o tempo não pára.  O tempo continua, inexoravelmente, passando... É implacável! Enquanto isso, esquizofrenicamente, são muitos os que preferem manter as próprias mentes agrilhoadas num tempo distante! Retomo a minha mania de analista para "constatar" que o "conflito", a "grande armadilha", a "tocaia",  não estão mais no caminho dos "jurados de morte", mas nas mentes... "Diagnostico" que os gananciosos e poderosos que, no passado, faziam as leis, hoje fraquejam diante da menor dificuldade, preferindo encarnar o drama "Perdidos na Velha Ilusão".

E todos pagam por isso!

(Souza Neto  -  21 de abril de 2011)

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