Leonardo da Vinci |
Recordados como heróis ou sanguinários vilões, os coronéis - como eram conhecidos os grandes proprietários de fazendas da época de ouro do cacau - não são frutos da ficção engenhosa de Jorge Amado, Adonias Filho ou Euclides Neto. Libertinos, violentos, desalmados, sagazes, impiedosos ou ambiciosos? Possivelmente tudo isso e muito mais. No entanto, esses lendários e rudes homens que desbravaram o sul da Bahia, no final do século 19, enfrentaram desafios homéricos, lutando contra a natureza bruta, conhecendo a fartura e fazendo história. Pela posse de terras selvagens, utilizaram o trabalho árduo, a dominação pela força e regras acima das leis. Instigaram caxixes e tocaias, crimes abomináveis, mas começaram pobres e sem instrução, subindo na vida pegando no facão, na espingarda papo amarelo, alimentando-se de carne seca, farinha e rapadura. Embrenharam na floresta hostil para desmatá-la, implantando a monocultura em meio a Mata Atlântica. Moraram em casebres e dormiram em redes, antes de atingir as pompas reservadas ao coronelismo.
Em “Terras do Sem Fim” (1942) e “Tocaia Grande” (1984), celebrados romances de Jorge Amado, encontramos a descrição desse processo de ocupação, da luta pela terra, da disputa acirrada. A partir desse clima de contendas e desconforto, em meio ao perigo, aos índios, animais selvagens e doenças, surgiu a personalidade mítica dos destemidos coronéis. Através deles e de milhares de humilhados ou massacrados, que não tiveram a mesma sorte, vilas e cidades nasceram para a glória da região dos frutos de ouro, como eram conhecidas as amêndoas do cacaueiro. Os coronéis transformaram esses lugares em palco para os seus mandos, fazendo-se obedecer, elegendo representantes políticos, usurpando propriedades, manipulando as autoridades e, quando tudo isso não saciava a cobiça, mandavam jagunços assassinar os pequenos cacauicultores em emboscadas, ou muitas vezes esses acossados acabavam trabalhando para os próprios perseguidores, e conseqüentemente perdiam as suas roças. Temidos, às vezes admirados, eram ativos participantes da vida social grapiúna (*), líderes legitimados pelo voto, quase sempre conquistado pela força do dinheiro, das armas e controle das instâncias públicas – a justiça, a polícia e a cobrança de impostos.
Eles não tinham limite de gastos: bebiam champanhe francês como aperitivo, perdiam fortunas na jogatina, freqüentavam cabarés, acendiam charutos com notas de quinhentos mil réis e bancavam luxuosamente prostitutas estrangeiras. Sinônimo de prosperidade, seus palacetes eram sobrados faustosos mobiliados com requinte europeu. Viviam no mais elevado estilo. Os trabalhadores, vindos dos sertões da Bahia e de Sergipe, mergulhados na exuberância da natureza, eram oprimidos de todas as formas: no salário que mal recebiam, nos preços extorsivos dos gêneros de primeira necessidade geralmente vendidos pelo próprio dono da fazenda, nas jornadas excessivas de trabalho e na ausência de serviços básicos, como educação e saúde.
A fama de Ilhéus e Itabuna correu mundo. Junto com ela chegaram imigrantes estrangeiros, principalmente turcos e libaneses, que sobreviviam como mascates, indo de fazenda em fazenda vendendo de tudo um pouco, e imprimindo a culinária árabe como uma das características da região cacaueira baiana. Os navios aportavam trazendo aventureiros em busca de riqueza fácil. Outros se deslocavam em animais ou mesmo em longas caminhadas, à procura do lucro certo e transformando a sociedade grapiúna em um misto de sotaques. No auge da lavoura do cacau, o sul da Bahia chegou a ser responsável por 40% da atividade financeira do Estado, num lucro inegável. Hoje, os coronéis, ex-deuses, são relíquias do passado e o cultivo do cacau passou da opulência à decadência. Porém, a saga dos plantadores de cacau dificilmente será esquecida, graças aos populares romances do itabunense Jorge Amado a aventura de uma pequena região se tornou conhecida em todo o Brasil e mundo afora, numa narrativa sedutora que relembra riquezas fundadas em episódios sangrentos, atentados e arruaças.
(*) Chame-se grapiúna aquele que nasce no sul da Bahia. A designação tem origem tupi, sendo corruptela de igarapé-una (igarapé, pequeno rio; una, preta) ou de igaraúna (igara, canoa; una, preta) com a queda da vogal e a contração das sílabas gara.
Saiba Mais Sobre o Tema em:
“Os Coronéis do Cacau” (1995), de Gustavo Falcón;
“Tensões do Tempo: A Saga do Cacau na Ficção de Jorge Amado” (2001), de Antonio Pereira Souza.
Coronéis Grapiúnas
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